(Beth Moon - Ancient Trees: Portraits Of Time, Abbeville Press, 2014)


“Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho
da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.”

(NERUDA, Pablo. O Caçador de raízes. Antologia Poética, José Olympio, 1994, p. 232.)


domingo, 24 de fevereiro de 2008

Poema das árvores - António Gedeão


As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.


(in: Obra Poética, Lisboa, Edições JSC, 2001)

Vai alto pela folhagem - Fernando Pessoa



Vai alto pela folhagem
Um rumor de pertencer,
Como se houvesse na aragem
Uma razão de querer.

Mas, sim, é como se o som
Do vento no arvoredo
Tivesse um intuito, ou bom
Ou mau, mas feito em segredo,

E que, pensando no abismo
Onde os ventos são ninguém,
Subisse até onde cismo,
E, alto, alado, num vaivém

De tormenta comovesse
As árvores agitadas
Até que delas me viesse
Este mau conto de fadas.


(05-09-1933)

Vai lá longe, na floresta - Fernando Pessoa



Vai lá longe, na floresta,
Um som de sons a passar,
Como de gnomos em festa
Que não consegue durar...

É um som vago e distinto.
Parece que entre o arvoredo
Quando seu rumor é extinto
Nasce outro som em segredo.

Ilusão ou circunstância?
Nada? Quanto atesta, e o que há
Num som, é só distância
Ou o que nunca haverá.

(01/02/1934)

Gnomos do luar que faz selvas - Fernando Pessoa




Gnomos no luar que faz selvas
As florestas sossegadas,
Que sois silêncios nas relvas,
E em aléas abandonadas
Fazeis sombras enganadas,

Que sempre se a gente olha
Acabastes de passar
E só um tremor de folha
Que o vento pode explicar
Fala de vós sem falar,

Levai-me no vosso rastro,
Que em minha alma quero ser
Como vosso corpo, um astro
Que só brilha quando houver
Quem o suponha sem ver.

Assim eu que canto ou choro
Quero velar-me a partir.
Lembrando o que não memoro,
Alguns me saibam sentir,
Mas ninguém me definir.


(In: Poesias Inéditas)

A falência do prazer e do amor, Primeiro Fausto - Fernando Pessoa (fragmento)




- Amo como o amor ama.
Não sei razão para amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?

(...)

‘Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci para ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida afora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela no futuro.’

(...)

(In: Poemas dramáticos, Primeiro Fausto, A falência do prazer e do amor, Terceiro tema, XXI)

Mestre, meu mestre querido - Fernando Pessoa/Álvaro de Campos


Mestre, meu mestre querido,
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,

Alma abstracta e visual até aos ossos.
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...


Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escrevo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.


Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.



(In: Antologia Poética. Ulisseia Ed. Poema que Álvaro de Campos dedica ao mestre Alberto Caeiro.)

Antes de nós - Fernando Pessoa/Ricardo Reis


(08/10/1914)
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

(In: Odes, Ricardo Reis, Ática, 1946.)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Oriente - Caio Fernando Abreu



"Manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres)

manda-me osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(em pentagrama, asas transparentes)

manda-me tudo pelo vento:
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares)"

(in:
Caio 3D: O Essencial da Década de 1970)
 


Poema III - Herberto Hélder


Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

(A Colher na Boca, 1960. In: Poesia Toda, 30-32)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Atrás da máscara - Michel Eyquem de Montaigne


"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."


Nada te faltará - Ana Carolina


""Pra onde vamos

As vans, carros e bicicletas?
Certezas avessas
Comércio de guerra
Legado de merda
Comércio de guerra
Legado de merda

Mais de um bilhão de chineses
Marchando sem deuses
E outros descalços
Fazendo sapatos
Pra nobres e ratos

Sobe do solo
A nuvem de óleo com cheiro
De enxofre queimado
Fudendo com os ares
E outras barbáries

Quero mudança total
Uma idéia genial
A ciência e o amor
A favor do futuro
Quero o claro no escuro

Peço paz aos filhos de Abraão
Quero Gandhi na melhor versão

E nada vai me faltar, e nada te faltará
E nada vai me faltar, e nada te faltará

Pra onde seguem os barcos?
Os homens, suas trilhas
Seus filhos e filhas
No pau da miséria?
Um pico na artéria

As mulheres pedintes perdidas
Que já quase loucas
Dividem o frio da noite
Com as drags
As mães e os "carregues"

Meninas sangrando na boca
E no meio das pernas
No meio da noite
Tomando cacete
Sem dente, sem leite

Quero respeito
Os humanos direitos
Fazendo pensar os pilares
De uma nova era
Que não seja quimera

Peço paz aos filhos de Abraão
Quero Gandhi na melhor versão

E nada vai me faltar, e nada te faltará
E nada vai me faltar, e nada te faltará"

(Composição: Ana Carolina e Antônio Villeroy)



domingo, 10 de fevereiro de 2008

Oitava Elegia - Rainer Maria Rilke



(dedicada a Rudolf Kassner)

"COM TODOS OS SEUS OLHOS, a criatura vê o Aberto. Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha se oculta em torno do livre caminho.
O que está além, pressentimos apenas na expressão do animal; pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah, esse espaço profundo que há na face do animal.
Isento de morte. Nós só vemos morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim; diante de si tem apenas Deus e quando se move é para a eternidade, como correm as fontes.
Ignoramos o que é contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde, sem cessar, as flores desabrocham. Sempre o mundo, jamais o em-parte-alguma, sem nada: o puro, o inesperado que se respira, que se ‘sabe’ infinito, sem a avidez do desejo.
Uma criança aí se perde, às vezes, em silêncio, mas é despertada. Ou alguém que morre, nisso se transforma. Pois os que da morte se aproximam não mais a podem ver, fixando o infinito com o grande olhar do animal.
Os amantes – não estivesse o outro a ofuscar-lhe a visão – sentem a obscura presença e se espantam... Às vezes há um descerrar-se atrás do outro... Mas o outro, como superá-lo? E o mundo já retorna.
Para a criação sempre voltados, nela vemos apenas o reflexo da liberdade que obscurecemos. Há no entanto esses olhos calmos que o animal levanta, atravessando-nos com seu mudo olhar. A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face.

Tivesse, como nós, consciência o animal tranqüilo – em outro sentido nos arrastaria; seu ritmo seria o nosso. Seu ser, porém, é infinito, inapreensível e sem olhar.
E ele tudo vê, puro e inconsciente de si, onde nós vemos futuro, em tudo se vê e salvo para sempre.
Há, entretanto, no animal quente e vigilante, a inquietude e a opressão de uma profunda nostalgia. Ele conhece a angústia que tantas vezes nos domina – a lembrança, como se esse para onde tendemos tivesse sido outrora mais fiel e de contato mais doce.

Tudo aqui é distância – lá era alento. Depois da primeira pátria, como parece a segunda incerta e sem abrigo! Bem-aventurada a ‘pequena’ criatura que sempre ‘permanece’ no seio que a criou; ó tu, mosca feliz, que saltas interiormente ainda mesmo nas núpcias: o ventre é tudo.
Olhai a quase-certeza do pássaro, que por sua origem pertence aos dois domínios, como se fosse a alma liberta de um etrusco que o espaço acolheu, mas com a imagem repousando a recobri-lo. E olhai a indecisão do que deve voar, expulso do seio. Espantado consigo mesmo fende o ar, taça partida. Assim risca o morcego, no seu vôo, a porcelana da tarde.

E nós: espectadores em tudo e sempre, voltados para tudo, nunca de fora.
Saciados, ordenamos. Mas tudo se desfaz. Novamente insistimos e nós mesmos passamos.

Quem nos desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo que fazemos? Como aquele que partindo se detém na última colina para contemplar o vale na distância – e ainda uma vez se volta, hesitante, e aguarda – assim vivemos nós, numa incessante despedida."


(In: Elegias de Duíno. Tradução e comentários de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Globo, 2001. Edição Bilíngüe)