(Beth Moon - Ancient Trees: Portraits Of Time, Abbeville Press, 2014)


“Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho
da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.”

(NERUDA, Pablo. O Caçador de raízes. Antologia Poética, José Olympio, 1994, p. 232.)


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A flor e a náusea - Carlos Drummond de Andrade

 

“Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta. 
Melancolias, mercadorias, espreitam-me. 
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça. 
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
 Sob a  pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase. 

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema 
resolvido, sequer colocado. 
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem. 

Crimes da terra, como perdoá-los? 
Tomei parte em muitos, outros escondi. 
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
 Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal. 

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. 
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. 
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, 
garanto que uma flor nasceu. 

Sua cor não se percebe. 
Suas pétalas não se abrem. 
Seu nome não está nos livros. 
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura. 
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. 
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” 

sábado, 10 de outubro de 2015

Ain't No Mountain High Enough - Marvin Gaye


Vídeo da música cantada por Susan Sarandon (em excelente performance) no filme "Stepmom" (Lado a Lado), que conta ainda com a participação de Julia Roberts.

domingo, 20 de setembro de 2015

Encantação da Primavera - Mario Quintana




"Brotam brotinhos na tarde feita
Só de suspiros:
O amor é um vírus...
Apenas o general de bronze continua de bronze!
O vento desrespeita todos os sinais do tráfego.
Velhinhos de gravata borboleta
Sobem e descem como autogiros.
O guarda de trânsito virou catavento.
As mulheres são de todas as cores como esses
manequins expostos nas vitrinas,
E onde é que estão, me conta, as tuas esperanças
mortas?!
Lá vão elas – tão lindas – vestidas de verde
Como Ofélias levadas pelos rios em fora
Enquanto eu nem me atrevo a olhar para o alto:
repara se não é
O Espírito Santo que vem descendo em lento voo
E até ele, até Ele, deve estar assim, – todo irisado
Como os olhos das crianças, como as maravilhosas
bolinhas-de-gude!"

domingo, 2 de agosto de 2015

Song of myself - Walt Whitman (fragmento)




“[...] Parto com o ar...
Sacudo minha neve branca ao sol que foge,
Desfaço minha carne em redemoinhos de espuma,
Entrego-me ao pó para crescer nas ervas que amo.
Se queres ver-me novamente procura-me
Sob teus sapatos.
Dificilmente saberás quem sou ou o que significo,
Não obstante serei para ti boa saúde,
E filtrarei e comporei teu sangue.
E se não conseguires encontrar-me, não desanimes
O que não está numa parte está noutra,
Nalgum lugar estarei a tua espera.”  

(Tradução de Monteiro Lobato)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Velhas árvores - Olavo Bilac




"Estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o insecto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!"

sábado, 4 de julho de 2015

Noturno - Mario Quintana




”Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca... 
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os caminhos...
Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa 
E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida... 
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!”  

(In: Aprendiz de Feiticeiro, 1950)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Com licença poética - Adélia Prado



”Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.” 


Poema de sete faces - Drummond




“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem sério do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.”

terça-feira, 9 de junho de 2015

A primeira vez que entendi - Affonso Romano de Sant'Anna


"A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro."

domingo, 24 de maio de 2015

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector


“Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. 
Receba em teus braços o meu pecado de pensar.”

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Poets of the Fall - Cradled in Love




You had the blue note sapphire eyes, to back up all those gazes
To pierce my guard and to take my soul off to faraway places
Told me I'll never be alone, cos you're right there

We took a gamble with this love, like sailing to the storm
With the waves rushing over to take us,
we were battling against the tide
You were my beacon of salvation, I was your starlight

So don't cry for your love, cry tears of joy
Cos you're alive cradled in love
Don't cry for your love, cry tears of joy
Cos you're alive cradled in love

I kept the love you gave me alive, and now I carry it with me
I know it's just a tear drop from mother earth, but in it
I can hear a dolphin sing
Telling me I'll never be alone, I know you're right there

So with the fire still burning bright, I wanna gaze into your light
If I could see my fortune there,
you know how flames can hypnotize
Do I even dare to speak out your name
for fear it sounds like, like a lover

So don't cry for your love, cry tears of joy
Cos you're alive cradled in love
Don't cry for your love, cry tears of joy
Cos you're alive

Cradled in love


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Precisão - Clarice Lispector







“O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.

O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.

Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.” 

Soneto XIV - Elizabeth Barret Browning




"Ama-me por amor do amor somente,
Não digas: 'Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minh'alma em comunhão constantemente
Com a sua'. Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor e, assim,
Me hás de querer por toda a eternidade."


(Tradução de Manuel Bandeira)

 
"If thou must love me, let it be for nought
Except for love's sake only. Do not say
«I love her for her smile... her look... her way
Of speaking gently,... for a trick of thought

That falls in well with mine, and certes brought
A sense of pleasant ease on such a day» —
For these things in themselves, Belovèd, may
Be changed, or change for thee, — and love, so wrought,

May be unwrought so. Neither love me for
Thine own dear pity's wiping my cheeks dry, —
A creature might forget to weep, who bore

Thy comfort long, and lose thy love thereby!
But love me for love's sake, that evermore
Thou may'st love on, through love's eternity." 

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Madrigal melancólica - Manuel Bandeira



"O que eu adoro em ti
Não é tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si 
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Mas é o espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é tua ciência
Do coração dos homens e das coisas

O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida 
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza

O que adoro em ti lastima-me e consola-me
O que eu adoro em ti é A VIDA !!!” 



segunda-feira, 16 de março de 2015

Algo existe - Emily Dickinson



  "Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.

Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura - um azul - uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trêmulo
E sutil, de mim se escape."


( 75 Poemas de Emily Dickinson, Sette Letras, 1999 - Rio de Janeiro, Brasil. Tradução de Lucia Olinto)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Os dragões não conhecem o paraíso - Caio Fernando Abreu





“(...) Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada. Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim (...)”



(In: Os dragões não conhecem o paraíso, 1988)