(Beth Moon - Ancient Trees: Portraits Of Time, Abbeville Press, 2014)


“Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho
da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.”

(NERUDA, Pablo. O Caçador de raízes. Antologia Poética, José Olympio, 1994, p. 232.)


domingo, 16 de novembro de 2008

Senhora das Tempestades - Manuel Alegre







Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em páginas nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa dos ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu catéter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades

(In: Camões - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, número 2, julho/setembro 1998.)



(Não consegui adicionar o link, por isso copiei o poema do seguinte endereço:

http://morenocris.blogspot.com/2008/11/manuel-alegre.html)

sábado, 13 de setembro de 2008

Soneto XLII - Pablo Neruda




"Radiantes dias balançados pela água marinha,
concentrados como o interior de uma pedra amarela
cujo esplendor de mel não derrubou a desordem:
preservou sua pureza de retângulo.

Crepita, sem, a hora como fogo ou abelhas
e é verde a tarefa de submergir em folhas,
até que para a altura é a folhagem
um mundo cintilante que se apaga e sussurra.

Sede do fogo, abrasadora multidão do estio
que constrói um éden com algumas quantas folhas,
porque a terra de rosto escuro não quer sofrimento,

mas frescor ou fogo, água ou pão para todos,
e nada deverá dividir os homens
senão o sol ou a noite, a lua ou as espigas."

(In: Cem Sonetos de Amor)



"Radiantes días balanceados por el agua marina,
concentrados como el interior de una piedra amarilla
cuyo esplendor de miel no derribó el desorden:
preservó su pureza de rectángulo.

Crepita, sí, la hora como fuego o abejas
y es verde la tarea de sumergirse en hojas,
hasta que hacia la altura es el follaje
un mundo centelleante que se apaga y susurra.

Sed del fuego, abrasadora multitud del estío
que construye un Edén con unas cuantas hojas,
porque la tierra de rostro oscuro no quiere sufrimientos

sino frescura o fuego, agua o pan para todos,
y nada debería dividir a los hombres
sino el sol o la noche, la luna o las espigas."


sábado, 19 de julho de 2008

Lya Luft


“Na balança dos dias certamente a alegria pesa muito mais do que todo o resto, e estão-se estabelecendo laços de afeto que o tempo não vai deteriorar. Com todos os meus erros, falhas e manias, aprecio laços e afetos, e me ilumina essa sensação de que, afinal, vale a pena. Não vivo pensando que a toda hora alguém vai me trair. Muitas vezes tenho medo. Frequentemente me engano. Devo machucar quem amo, e certamente sem razão me sinto ferida algumas vezes. Todos os pequenos dramas são meus. Nos meus anos e multiplicados afetos, mais de uma vez quando pensei que haveria uma celebração, foi um fiasco. Quando imaginei um encontro, foi solidão. Quando quis abraço, fui segregada. Mas mais do que perder, continuo ganhando. Esperando que dentro das pequenas ou grandes tempestades que ocorrem para todos nós, fique uma memória de esperança, de amor e lealdade.”

(Perdas & Ganhos, 2006, p.53)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Faltando um Pedaço - Djavan


"O amor é um grande laço
Um passo pr'uma armadilha
Um lobo correndo em círculos
Pra alimentar a matilha

Comparo sua chegada
Com a fuga de uma ilha
Tanto engorda quanto mata
Feito desgosto de filha

O amor é como um raio
Galopando em desafio
Abre fendas, cobre vales,
Revolta as águas dos rios

Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá no caminho
Na pureza do limão
Ou na solidão do espinho

O amor e a agonia
Cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio
O cio vence o cansaço

E o coração de quem ama
Fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando
Que nem o meu nos seus braços..."



Happy Birthday... Marcelo...


sábado, 7 de junho de 2008

A flor que és - Fernando Pessoa/R.Reis



A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.







Se viver o amor nos traz vida e magia, lembrar então... é amar duplamente: imprescindível...
Vinte e quatro anos passados e ainda me emociono ao ler esse poema...



domingo, 20 de abril de 2008

Coisas que eu sei - Danni Carlos


"Eu quero ficar perto
De tudo o que acho certo
Até o dia em que eu mudar de opinião
A minha experiência
Meu pacto com a ciência
Meu conhecimento é minha distração

Coisas que eu sei
Eu adivinho sem ninguém ter me contado
Coisas que eu sei
O meu rádio relógio mostra o tempo errado
Aperte o play
Eu gosto do meu quarto
Do meu desarrumado
Ninguém sabe mexer na minha confusão
É o meu ponto de vista
Não aceito turistas
Meu mundo ta fechado pra visitação

Coisas que eu sei
O medo mora perto das idéias loucas
Coisas que eu sei
Se eu for eu vou assim não vou trocar de roupa
É minha Lei

Eu corto os meus dobrados
Acerto os meus pecados
Ninguém pergunta mais depois que eu já paguei
Eu vejo o filme em pausas
Eu imagino casas
Depois eu já nem lembro do que eu desenhei

Coisas que eu sei
Não guardo mais agendas no meu celular
Coisas que eu sei
Eu compro aparelhos que eu não sei usar
Eu já comprei
Ás vezes dá preguiça
Na areia movediça
Quanto mais eu mexo mais afundo em mim
Eu moro num cenário
Do lado imaginário
Eu entro e saio sempre quando eu tô afim

Coisas que eu sei
As noites ficam claras no raiar do dia
Coisas que eu sei
São coisas que antes eu somente não sabia...

Agora eu sei..."
 
(Composição: Dudu Falcão) 
 
 

Tu eras também uma pequena folha... - Pablo Neruda




“Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.”

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Meu epitáfio - Cora Coralina


“Morta... serei árvore
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo de vida vegetal.

Não morre aquele que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.”

segunda-feira, 24 de março de 2008

O esforço - Fabrício Carpinejar



"O que se esforçou para viver não desaparece."

sexta-feira, 21 de março de 2008

A árvore - Fernanda de Castro


Na Primavera, a árvore
era um ninho de folhas palpitantes
como pequenas asas verdes.

No Estio,
cobria-se de flores, cada ramo
era um jardim suspenso.

Vinha depois o Outono. As flores mortas
eram leito de pássaros.
As folhas partiam, esvoaçando,
tal borboletas de oiro.

Por fim, o Inverno; em vez de folhas,
braços nus, troncos mortos,
desolada solidão.

Mas um dia...
Um dia a Primavera voltou
com suas folhas palpitantes
como pequenas asas verdes.

O Estio,
com as suas flores,
com os seus jardins suspensos.

O Outono, com seus pomos
e as borboletas de oiro
das suas folhas a dançar ao vento.

O Inverno com seus musgos,
seus descamados braços nus.

Mas a árvore
a bela árvore era sempre a mesma
na sua ilimitada confiança.

Foi então que aprendi,
da árvore, a lição:
A vida é uma longa paciência
e uma longa esperança.

Para Cris - Julio Cortázar


“Agora escrevo pássaros.
Não os vejo chegar, não escolho,
de repente estão aí,
um bando de palavras
a pousar
uma
por
uma
nos arames da página,
entre chilreios e bicadas, chuva de asas,
e eu sem pão para dar, tão somente
deixo-os vir. Talvez
seja isto uma árvore,
ou quem sabe,
o amor.”

(Tradução Sidnei Schneider, 2007)

----------

Ahora escribo pájaros.
No los veo venir, no los elijo,
de golpe están ahí, son esto,
una bandada de palabras
posándose
una
a
una
en los alambres de la página,
chirriando, picoteando, lluvia de alas
y yo sin pan que darles, solamente
dejándolos venir. Tal vez
sea eso un árbol
o tal vez
el amor.

(Julio Cortázar, Cinco últimos poemas para Cris, Salvo el crepúsculo, 1984.)


Canções para a lua cheia



Impossível não sentir a magia desta noite

de lua plena

Quando o vento traz uma carícia à pele,

um arrepio

Será o outono chegando

Ou apenas o roçar das asas de um anjo?

"Yesterday, all my troubles seemed so far away..."

A trilha sonora perfeita

para o passeio da lua pelos meus olhos...

Como poderia sentir-me sozinha?

Como não esquecer todos os mortais

entraves e contingências?

Ao fundo, as águas cantantes de um "arroio guri"

fazem a segunda voz

para uma noite encantada...

"Unforgettable... it's incredible..."

Já não sei se mais ouço, vejo, ou sinto...

mas calo

diante de tamanha beleza

transcendência

Pureza

MágicaEssência.

"What a wonderful world..."


----------------------------------

(Ruiva da Noite, 21/03/2008)

Publicado no Recanto das Letras em 21/03/2008

Código do texto: T910925

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Poema das árvores - António Gedeão


As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.


(in: Obra Poética, Lisboa, Edições JSC, 2001)

Vai alto pela folhagem - Fernando Pessoa



Vai alto pela folhagem
Um rumor de pertencer,
Como se houvesse na aragem
Uma razão de querer.

Mas, sim, é como se o som
Do vento no arvoredo
Tivesse um intuito, ou bom
Ou mau, mas feito em segredo,

E que, pensando no abismo
Onde os ventos são ninguém,
Subisse até onde cismo,
E, alto, alado, num vaivém

De tormenta comovesse
As árvores agitadas
Até que delas me viesse
Este mau conto de fadas.


(05-09-1933)

Vai lá longe, na floresta - Fernando Pessoa



Vai lá longe, na floresta,
Um som de sons a passar,
Como de gnomos em festa
Que não consegue durar...

É um som vago e distinto.
Parece que entre o arvoredo
Quando seu rumor é extinto
Nasce outro som em segredo.

Ilusão ou circunstância?
Nada? Quanto atesta, e o que há
Num som, é só distância
Ou o que nunca haverá.

(01/02/1934)

Gnomos do luar que faz selvas - Fernando Pessoa




Gnomos no luar que faz selvas
As florestas sossegadas,
Que sois silêncios nas relvas,
E em aléas abandonadas
Fazeis sombras enganadas,

Que sempre se a gente olha
Acabastes de passar
E só um tremor de folha
Que o vento pode explicar
Fala de vós sem falar,

Levai-me no vosso rastro,
Que em minha alma quero ser
Como vosso corpo, um astro
Que só brilha quando houver
Quem o suponha sem ver.

Assim eu que canto ou choro
Quero velar-me a partir.
Lembrando o que não memoro,
Alguns me saibam sentir,
Mas ninguém me definir.


(In: Poesias Inéditas)

A falência do prazer e do amor, Primeiro Fausto - Fernando Pessoa (fragmento)




- Amo como o amor ama.
Não sei razão para amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?

(...)

‘Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci para ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida afora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela no futuro.’

(...)

(In: Poemas dramáticos, Primeiro Fausto, A falência do prazer e do amor, Terceiro tema, XXI)

Mestre, meu mestre querido - Fernando Pessoa/Álvaro de Campos


Mestre, meu mestre querido,
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,

Alma abstracta e visual até aos ossos.
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...


Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escrevo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.


Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.



(In: Antologia Poética. Ulisseia Ed. Poema que Álvaro de Campos dedica ao mestre Alberto Caeiro.)

Antes de nós - Fernando Pessoa/Ricardo Reis


(08/10/1914)
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

(In: Odes, Ricardo Reis, Ática, 1946.)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Oriente - Caio Fernando Abreu



"Manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres)

manda-me osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(em pentagrama, asas transparentes)

manda-me tudo pelo vento:
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares)"

(in:
Caio 3D: O Essencial da Década de 1970)
 


Poema III - Herberto Hélder


Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

(A Colher na Boca, 1960. In: Poesia Toda, 30-32)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Atrás da máscara - Michel Eyquem de Montaigne


"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."


Nada te faltará - Ana Carolina


""Pra onde vamos

As vans, carros e bicicletas?
Certezas avessas
Comércio de guerra
Legado de merda
Comércio de guerra
Legado de merda

Mais de um bilhão de chineses
Marchando sem deuses
E outros descalços
Fazendo sapatos
Pra nobres e ratos

Sobe do solo
A nuvem de óleo com cheiro
De enxofre queimado
Fudendo com os ares
E outras barbáries

Quero mudança total
Uma idéia genial
A ciência e o amor
A favor do futuro
Quero o claro no escuro

Peço paz aos filhos de Abraão
Quero Gandhi na melhor versão

E nada vai me faltar, e nada te faltará
E nada vai me faltar, e nada te faltará

Pra onde seguem os barcos?
Os homens, suas trilhas
Seus filhos e filhas
No pau da miséria?
Um pico na artéria

As mulheres pedintes perdidas
Que já quase loucas
Dividem o frio da noite
Com as drags
As mães e os "carregues"

Meninas sangrando na boca
E no meio das pernas
No meio da noite
Tomando cacete
Sem dente, sem leite

Quero respeito
Os humanos direitos
Fazendo pensar os pilares
De uma nova era
Que não seja quimera

Peço paz aos filhos de Abraão
Quero Gandhi na melhor versão

E nada vai me faltar, e nada te faltará
E nada vai me faltar, e nada te faltará"

(Composição: Ana Carolina e Antônio Villeroy)



domingo, 10 de fevereiro de 2008

Oitava Elegia - Rainer Maria Rilke



(dedicada a Rudolf Kassner)

"COM TODOS OS SEUS OLHOS, a criatura vê o Aberto. Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha se oculta em torno do livre caminho.
O que está além, pressentimos apenas na expressão do animal; pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah, esse espaço profundo que há na face do animal.
Isento de morte. Nós só vemos morte. O animal espontâneo ultrapassou seu fim; diante de si tem apenas Deus e quando se move é para a eternidade, como correm as fontes.
Ignoramos o que é contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde, sem cessar, as flores desabrocham. Sempre o mundo, jamais o em-parte-alguma, sem nada: o puro, o inesperado que se respira, que se ‘sabe’ infinito, sem a avidez do desejo.
Uma criança aí se perde, às vezes, em silêncio, mas é despertada. Ou alguém que morre, nisso se transforma. Pois os que da morte se aproximam não mais a podem ver, fixando o infinito com o grande olhar do animal.
Os amantes – não estivesse o outro a ofuscar-lhe a visão – sentem a obscura presença e se espantam... Às vezes há um descerrar-se atrás do outro... Mas o outro, como superá-lo? E o mundo já retorna.
Para a criação sempre voltados, nela vemos apenas o reflexo da liberdade que obscurecemos. Há no entanto esses olhos calmos que o animal levanta, atravessando-nos com seu mudo olhar. A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face.

Tivesse, como nós, consciência o animal tranqüilo – em outro sentido nos arrastaria; seu ritmo seria o nosso. Seu ser, porém, é infinito, inapreensível e sem olhar.
E ele tudo vê, puro e inconsciente de si, onde nós vemos futuro, em tudo se vê e salvo para sempre.
Há, entretanto, no animal quente e vigilante, a inquietude e a opressão de uma profunda nostalgia. Ele conhece a angústia que tantas vezes nos domina – a lembrança, como se esse para onde tendemos tivesse sido outrora mais fiel e de contato mais doce.

Tudo aqui é distância – lá era alento. Depois da primeira pátria, como parece a segunda incerta e sem abrigo! Bem-aventurada a ‘pequena’ criatura que sempre ‘permanece’ no seio que a criou; ó tu, mosca feliz, que saltas interiormente ainda mesmo nas núpcias: o ventre é tudo.
Olhai a quase-certeza do pássaro, que por sua origem pertence aos dois domínios, como se fosse a alma liberta de um etrusco que o espaço acolheu, mas com a imagem repousando a recobri-lo. E olhai a indecisão do que deve voar, expulso do seio. Espantado consigo mesmo fende o ar, taça partida. Assim risca o morcego, no seu vôo, a porcelana da tarde.

E nós: espectadores em tudo e sempre, voltados para tudo, nunca de fora.
Saciados, ordenamos. Mas tudo se desfaz. Novamente insistimos e nós mesmos passamos.

Quem nos desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo que fazemos? Como aquele que partindo se detém na última colina para contemplar o vale na distância – e ainda uma vez se volta, hesitante, e aguarda – assim vivemos nós, numa incessante despedida."


(In: Elegias de Duíno. Tradução e comentários de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Globo, 2001. Edição Bilíngüe)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Dez Chamamentos ao Amigo - Hilda Hilst



"Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta


Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento."


(In: Júbilo, memória, noviciado da paixão. Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2001)




Reza para as quatro almas de Fernando Pessoa - Adélia Prado


“Da belíssima 'Ode à noite antiga'
resulta que eu entendo, limpo de esforço e vaidade
se nos fosse possível:
da oração verdadeira nasce a força.
Ninguém se cansa de bondade e avencas.
Os rebanhos guardados guardam o homem.
Todos que estamos vivos morreremos.
Não é pra entender que nós pensamos,
é para sermos perdoados.
Pai nosso, criador da noite, do sonho,
do meu poder sobre os bois,
eis-me, eis-me.”

Mulher Adormecida - Cecília Meireles


“Moro no ventre da noite:
sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo a vida.

As estrelas, mais o negrume
são minhas faixas tutelares,
e as areias e o sal dos mares.

Ser tão completa e estar tão longe!
Sem nome e sem família cresço,
e sem rosto me reconheço.

Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.
Mas intransitável, e escura.

Estarei um tempo divino
como árvore em quieta semente,
dobrada na noite, e dormente.

Até que de algum lado venha
a anunciação do meu segredo
desentranhar-me deste enredo,

arrancar-me à vagueza imensa,
consolar-me deste abandono,
mudar-me a posição do sono.

Ah, causador dos meus olhos,
que paisagem cria ou pensa
para mim, a noite densa?”